Quando Silvana Regina Pereira parou de estudar aos 16 anos, após engravidar, não sabia quando voltaria a pisar numa sala de aula. O retorno foi incentivado pela Natura, que fez uma parceria com o Serviço Social da Indústria (SESI) para ofertar 176 bolsas integrais a consultoras de beleza. Depois de 41 anos fora da escola, Silvana ganhou uma oportunidade para terminar a educação básica por meio da Educação para Jovens e Adultos (EJA) da unidade do SESI A.E. Carvalho, em São Paulo (SP).
Desde a primeira gravidez, ela teve mais quatro filhos e trabalhou em indústria de alimentos e em creches. Um tempo depois, veio a ideia junto com dois de seus filhos de abrir um quiosque na estação de metrô Itaquera, na zona leste de São Paulo, para vender cosméticos de diversas marcas, dentre elas, a Natura.
Os filhos sempre incentivaram a mãe a voltar a estudar principalmente por ela lidar com muitas pessoas e fazer lives no Instagram da loja. Com as aulas, Silvana pôde dar um novo significado a experiências passadas que representavam um bloqueio na sua aprendizagem e relembrar sua capacidade para voltar a estudar todos os dias.
O maior medo dela era falar errado e ser julgada, mas o que encontrou foi acolhimento, tanto das professoras quanto dos colegas. Hoje, ela conta que consegue falar melhor nas transmissões ao vivo, graças à Nova EJA.
“Eu estou me esforçando mais e estou conseguindo falar melhor. Se chega cliente, eu sei a dificuldade, pergunto o que está precisando e também levanto a autoestima. Aprendi muito com a EJA e a Natura sobre isso”, conta.
A Educação para Jovens e Adultos fez Silvana ter novos planos e sonhar de novo, dessa vez em estar nas asas de um avião. “Minha vida toda pensei em ser aeromoça. A cunhada da minha filha postou que está fazendo um curso, estava no avião fazendo provas, e eu queria muito fazer isso também. Minha filha me incentivou a não desistir”, compartilha.
Nessa parceria do SESI com a Natura, as consultoras têm acesso a bolsas da Nova EJA, modelo criado pelo SESI para uma Educação de Jovens e Adultos mais aderente às necessidades daqueles que desejam retomar os estudos, mas encontram uma série de dificuldades.
As aulas começaram na primeira semana de março e devem finalizar em fevereiro de 2024. A iniciativa foi implementada nos estados de São Paulo e Pernambuco. No primeiro, são 69 consultoras matriculadas nas unidades do Tatuapé, Santo André e A.E. Carvalho. Já no segundo, são 107 estudantes no SESI Vasco da Gama, em Recife (PE).
No Nordeste, o curso é on-line, o que oferece mais flexibilidade e autonomia nos estudos às pessoas que já têm uma rotina de trabalho, incluindo doméstico. Já em São Paulo, a formação é híbrida, com algumas aulas presenciais.
A metodologia tem um processo de reconhecimento de saberes, que identifica a bagagem do estudante, por meio de certificados e experiências do dia a dia, por exemplo. O aluno pode eliminar algumas competências e acelerar os estudos. O ensino médio tradicional que seria feito em 3 anos pode durar até 13 meses.
Letícia Matos e Gabriela Monteiro são professoras orientadoras da EJA no SESI A.E. Carvalho e explicam que o reconhecimento de saberes também é uma grande ferramenta de empoderamento.
“O fato de não ter terminado os estudos mexe demais com a autoestima dos alunos. Quando o estudante volta e entende que o reconhecimento de saberes vai olhar para a vida dele, ele percebe que o fato de não ter tido um diploma não significa que ele não sabe nada”, ressalta Letícia. “A gente consegue mostrar que tudo o que ele fez ao longo da vida também foi aprendizado.”
As professoras acrescentam que, no processo de reconhecer os saberes, elas selecionam exercícios da matemática, por exemplo, e tentam fazer com que os alunos lembrem do seu dia a dia.
“O mais importante é eles perceberem que, apesar de terem parado de estudar, eles não pararam de aprender. O conhecimento foi adquirido de outra forma, e eles conseguem ter essa visão”, reflete Gabriela.
E não só o conhecimento adquirido no cotidiano é válido, como também capacitações. Silvana Mença, analista técnica educacional da supervisão de EJA do SESI-SP, explica que a própria Natura tem uma plataforma de cursos on-line. No momento de reconhecer os saberes, os alunos podem trazer certificados para comprovar algum conhecimento adquirido.
“Uma das alunas nunca fez cursos, e a gente incentivou que ela fizesse um na própria plataforma da Natura, que oferece isso aos consultores. É uma via de mão dupla. Eles trazem o aluno, mas a gente faz com que ele volte para a empresa diferente”, ressalta a analista.
Assim como Silvana Pereira interrompeu os estudos porque precisou se dedicar à maternidade, a história também se repetiu para Jozenita Bezerra da Silva Lima, 56 anos, mas em Recife. Depois de ser mãe, ela trabalhou como empregada doméstica durante 27 anos e também chegou a abandonar a função para cuidar dos pais idosos.
Anos depois, Jozenita começou a vender produtos da Natura e, por incentivo de um ex-colega de trabalho, voltou a estudar do zero há quatro anos. Ela tinha feito até a 4ª série, e quando a oportunidade no SESI apareceu este ano, Jozenita não pensou duas vezes em se inscrever.
“Não parei de estudar mais. Quanto mais a gente estuda, mais aprende, mais fica esperto e é como se acendesse uma luzinha na nossa cabeça”, compara a vendedora de cosméticos.
Apesar das dificuldades com o computador, ela conseguiu extrair um aprendizado fundamental, principalmente com as aulas de matemática: aprender a negociar.
“Quando o cliente vai pagar à vista, eu facilito mais as coisas, sei se posso abaixar o preço. Quando é um cliente que só compra se eu dividir e paga certinho, dá para fazer por mais parcelas. Quando dá trabalho, digo que só posso fazer em menos parcelas”, explica.
Além de uma aula inaugural para que todos os estudantes se sentissem acolhidos, as professoras Letícia e Gabriela, do SESI A.E. Carvalho, tiveram o cuidado de preparar oficinas. A proposta era quebrar a visão que os estudantes tinham da escola.
“Às vezes, eles chegavam com o caderninho achando que ia ter uma aula e não era isso. Primeiro, tivemos diversas dinâmicas para ajudá-los a resgatar memórias para a gente validar as habilidades que eles já tinham, como resgatar uma memória da infância, de quando a pessoa se casou ou a relação com os pais”, exemplifica Letícia.
Wanessa Moura, professora de linguagens do SESI Vasco da Gama, em Recife (PE), acrescenta que a Educação para Jovens e Adultos não está ali apenas para dar um certificado de educação básica, mas motivar esses estudantes que já foram negados uma vez a oportunidade de estudar. Afinal, “a EJA diferente de qualquer educação regular tem esse processo que é não só ensinar, mas acolher”.
Tutoriais de como acessar as aulas, manusear um celular e monitorias também fazem parte do acolhimento. Para o público mais velho, a dificuldade muitas vezes pode ser no simples digitar. Em SP e PE, as equipes pedagógicas fizeram vídeos de como encontrar os conteúdos nas plataformas utilizadas e também mantém grupos de mensagens no WhatsApp.
Como proposta da Nova EJA, o currículo dos estudantes é personalizado e baseado em itinerários formativos que permitem destacar áreas de interesse. No SESI Vasco da Gama, foi trabalhado, por exemplo, o Dia do Povo Indígena envolvendo as quatro áreas do conhecimento: linguagens, natureza, humanas e exatas.
“A gente cria essa interlocução para passar esse tema e organizamos passeios no Museu do Homem do Nordeste para resgatar a parte cultural e o processo de identidade”, pondera a professora de linguagens Wanessa Moura.
No SESI-SP, os alunos têm uma inciativa de leitura para ler o Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, além de idas ao teatro e confraternizações temáticas, como uma festa junina.
Para o ano que vem, as expectativas são altas: alcançar 21 mil alunos da Nova EJA em São Paulo. Rita Figueiredo, supervisora técnica educacional da supervisão de EJA do SESI-SP, conta que a partir de agora o departamento regional está “debruçado nessa mudança” do ensino tradicional para a Nova EJA.
“A parceria com a Natura foi importante, porque foi nossa primeira experiência com a metodologia e queremos ampliar para todas as unidades do estado ano que vem. EJA é troca, é uma oportunidade para as mulheres e professores que foram escolhidos a dedo. É uma transformação profissional de vida e de cidadão que acontece para todos”, finaliza.
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